segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Conhecendo o inimigo

A compreensão exata (ou o mais próximo disso a que um leigo pode chegar) sobre riscos, anomalias associadas, procedimentos de correção e taxas de sucesso foi fundamental para que, no meio do furacão, eu tivesse a serenidade de saber que estávamos fazendo todo o possível por nossa filha.
Na internet, há muitos artigos científicos sobre a doença em inglês, mas ainda pouca produção em português. Um material bastante recente é a dissertação de mestrado de Joziele Souza Lima, disponível em:

  http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/BUOS-8ZKM5Y/disserta__o_final_joziele.pdf?sequence=1

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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Contra a sanha dos planos de saúde, usando Sandel

Michael Sandel, refletindo sobre os limites morais do mercado, diz: "a era do triunfalismo de mercado chegou ao fim. A crise financeira não serviu apenas para pôr em dúvida a capacidade dos mercados de gerir os riscos com eficiência. Generalizou também a impressão de que os mercados desvincularam-se da moral e de que alguma forma precisamos reestabelecer esse vínculo" (2012, p.12). Os valores de mercado chegaram a esferas da vida com as quais nada tem a ver: preços na saúde, "segmentação" de tratamentos e pessoas de acordo com contratos leoninos.

O Código de Ética Médica - e os planos de saúde, creio, devem alguma obediência a ele - afirma como princípio: "a Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio"; não cabe, como cabe no comércio, os cálculos de máximo lucro com mínimo dispêndio,  a busca do acúmulo de dinheiro como fim em si mesmo.

O Código do Consumidor informa ainda que é excessiva e onerosa qualquer cláusula contratual que ofenda os princípios fundamentais do sistema jurídico (dignidade da pessoa humana, proteção dos vulneráveis, preservação e promoção da saúde, justiça, boa fé p.ex.); restrinja direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual (qual seria a natureza de um plano de saúde, senão prover a assistência à saúde?); mostra-se excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso (qual justiça existe quando uma família, que paga religiosamente seus boletos, tem que suportar os custos da doença, se ela ocorre?).

Segundo Resolução Normativa da ANS (RN 211), art. 12, o atendimento deve ser assegurado independente da circunstância e do local de ocorrência do evento, respeitadas a segmentação, a área de atuação e abrangência, a rede de prestadores de serviços contratada, credenciada ou referenciada da operadora de plano privado de assistência à saúde e os prazos de carência estabelecidos no contrato. A Operadora recusar-se a arcar com despesas de um hospital sob justificativa de ser de "alto custo" representa, muitas vezes, um custo ainda mais alto; na minha história, era a potencial morte de minha filha.

Na frente de um caso raro, de atenção à saúde de uma recém-nascida que demanda serviços específicos, o mercado deturpa valores e corrompe o significado da vida, tradicionalmente "sem preço", quando se esquiva de um dever que é legal, moral, ético. Novamente, Michael Sandel: "quando decidimos que determinados bens podem ser comprados e vendidos, estamos decidindo, pelo menos implicitamente, que podem ser tratados como mercadorias, como instrumentos de lucro e uso. Mas nem todos os bens podem ser avaliados dessa maneira. O exemplo mais óbvio são os seres humanos" (2012, p.15).

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Muito barulho por muito

Quando o descaso dos planos de saúde atinge a camada da pele que mais dói - a pele de um filho -, é preciso fazer barulho.

Procuramos não apenas a via administrativa, como o Poder Judiciário, a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (onde fomos recebidos com carinho e obtivemos uma declaração em que a entidade dizia enxergar ali um caso de violação de direitos; declaração logo juntada aos autos da ação), o Ministério Público Federal (onde registramos denúncia) e o "Reclame Aqui", espécie de Procon virtual.

"Estou grávida e meu feto foi diagnosticado com má formação pulmonar rara, que demanda atendimento especializado, em centro terciário, com equipes de neonatologia, cirurgia pediátrica e de cuidados intensivos que reúnam experiência e condições estruturais para acolhê-lo.Procurei seis especialistas que, unânimes, indicaram-me um determinado hospital em São Paulo. No entanto, a EMPRESA, ignorando os relatórios médicos (estranho isso, já que a propaganda da Cooperativa de médicos apela justamente para a chamada "Somos médicos. E isso faz toda a diferença") e a especificidade de minha condição, respondeu-me que meu plano ("Especial", abrangência nacional), no intercâmbio para EMPRESA Paulistana, era "traduzido" para a modalidade mais básica, sem cobertura necessária para a internação no hospital indicado pelos profissionais médicos (inclusive credenciados à EMPRESA!) consultados.Lendo o contrato, percebo que não há cláusula nenhuma que me informe os critérios usados para compatibilização, não há nenhuma lista de hospitais excluídos na conversão entre "co-irmãs" e não há mesmo nada que legitime a resposta negativa do Plano de Saúde. Surpreende-me, como consumidora, a total ausência da EMPRESA em espaços como este: nenhuma das denúncias recentes que li no "Reclame Aqui" parece ter recebido atenção da empresa. Surpreende-me a negligência diante do risco à vida, surpreende-me a existência de contratos tão frouxos e vagos, surpreende-me minha própria inocência em aderir a esses pactos leoninos, surpreendem-me os gastos desviados do fim (patrocínio de times de futebol, publicidade farta). Espero obter, em alguma sede, seja ANS, Justiça ou entidades de defesa ao consumidor, amparo e assistência."

Jurisprudência

Reúno neste post alguma jurisprudência que pode ser útil a quem, como eu, precisar recorrer à via judicial para obter atendimento médico em centro terciário.


I. Dados Gerais
Processo:
AI 1999544720118260000 SP 0199954-47.2011.8.26.0000
Relator(a):
Fabio Tabosa
Julgamento:
08/11/2011
Órgão Julgador:
2ª Câmara de Direito Privado
Publicação:
09/11/2011
Ementa

Plano de saúde. Tutela antecipada. Atendimento de urgência fora da base territorial. Hospital que a operadora diz estranho à rede básica da congênere local, sem todavia trazer elementos claros a respeito. Alegação de se tratar de hospital de tabela própria, pelo alto custo, que não indica não seja ele credenciado, e que de toda forma não foi devidamente demonstrada em si mesma. Caráter duvidoso, ademais, da restrição baseada apenas nesse critério. Tutela antecipada que se confirma. Agravo de instrumento da ré desprovido.

II. Dados Gerais
Processo:
APL 210368520118260011 SP 0021036-85.2011.8.26.0011
Relator(a):
Luiz Antonio Costa
Julgamento:
16/05/2012
Órgão Julgador:
7ª Câmara de Direito Privado
Publicação:
18/05/2012
Ementa

Consumidor Plano de Saúde Hepatocarcinoma Exclusão de radioterapia tridimensional e de medicamento de alto custo, de uso domiciliar por via oral Impossibilidade Doença coberta pelo contrato A operadora pode estabelecer quais doenças estão sendo cobertas, mas não o tipo de tratamento indicado para a respectiva cura Não pode o paciente, em razão de cláusula limitativa, ser impedido de receber tratamento com o método mais moderno disponível no momento em que instalada a doença coberta Jurisprudência dominante do STJ Sentença mantida RITJSP, art. 252 Recurso improvido.

III.
Dados Gerais
Processo:
APL 2545605520078260100 SP 0254560-55.2007.8.26.0100
Relator(a):
Enio Zuliani
Julgamento:
10/03/2011
Órgão Julgador:
4ª Câmara de Direito Privado
Publicação:
12/03/2011
Ementa

Plano de saúde UNIMED BELÉM Paciente acometida de câncer na medula óssea - Negativa de autorização para a realização de tratamento quimioterápico, prescrito por médico especialista, em Hospital que utiliza Tabela Própria Alto Custo, em São Paulo - Exclusão que contraria a função social do contrato [art. 421 do CC], retirando da autora a possibilidade de sobrevida com dignidade, até porque a UNIMED não comprovou a existência de procedimento similar dentro de sua área de atuação ou de seu quadro de cooperados [hospital ou clínica] Dever de custeio pela cooperativa Sentença mantida Não provimento.

Compartilhando experiência...

Em 03 julho de 2012, com aproximadamente 23 semanas de gestação, submeti-me a um exame de ultrassonografia, que detectou na região torácica do feto um "triângulo" de maior ecogenicidade, cuja suspeita inicial seria Hérnia Diafragmática. A este, outros vários exames seguiram, revelando ao fim duas principais hipóteses diagnósticas: Sequestro Pulmonar ou Malformação Adenomatosa Cística (MAC) tipo III.

Em Belém, onde vivemos, soubemos de apenas um caso operado - com sucesso, diga-se - e todos os médicos foram unânimes em indicar-nos uma ida a São Paulo. Lá chegamos mais perto de um diagnóstico definitivo, de MAC tipo III.

Aos poucos fomos tomando pé da situação, descobrimos que se trata de uma anomalia rara (25% das malformações pulmonares), tão rara que publicações internacionais dão notícia de que a incidência é de 1/11.000 a 1/35.000 nascidos vivos. Descobrimos que o tratamento é sempre cirúrgico – excepcionalmente ainda intra-útero e, em regra, com cirurgia de grande porte pós-parto.   Descobrimos que, no Brasil, há profissionais e lugares que lidam com esses casos com competência e certa frequencia. No entanto, descobrimos também que nosso plano não cobriria os custos de tais equipes e centros. Tantas descobertas ainda no período ante-natal foram essenciais para mobilizarmos uma corrente de amigos, que auxiliou jurídica, médica e emocionalmente.

Com ajuda de ótimos colegas, Drs Luciano Cavalcante Ferreira, Pedro DallAgnol e Eliceli Abdoral, elaboramos uma ação, reunindo pareceres de todos os médicos consultados, expondo de modo claro a excepcionalidade da situação e narrando que, para as crianças que têm oportunidade de realizar a intervenção, o prognóstico pós-cirúrgico em longo prazo é comprovadamente positivo.

Um plano de saúde que não permite o atendimento referencial (e não havia escolha por luxo, vaidade ou simples predileção, tratava-se de indicação médica) oferece, na verdade, algo como um produto nocivo, perigoso ao consumidor, atentatório a seu direito básico. Insistimos no argumento que há de se convir que o beneficiário, como cliente,  é triplamente frágil: hipossuficiente como consumidor, vulnerável porque demanda o serviço em situação de doença/risco, ignorante do jargão técnico, do "rol de procedimentos obrigatórios", do CID . Felizmente, a liminar logo chegou.

Outros tantos amigos ajudaram-nos a esclarecer dúvidas médicas, montar logística e infra em São Paulo e manter cuidados com nossa outra filha pequena, em Belém. Muitíssimos outros somaram-se em preces e pensamentos positivos.

Em 4 outubro 2012, Clarice nasceu, em São Paulo, no hospital com UTI neonatal e médicos experientes para recebê-la. Tão logo nasceu, foi encaminhada para a unidade de cuidados intensivos para avaliação. O primeiro raio x realizado nela não encontrou a massa, então foi preciso um exame de tomografia - este sim a constatou, no pulmãozinho direito.

Em 11 outubro 2012, às 11 horas, a pequena foi levada para o centro cirúrgico. Uma hora depois, um sorriso do Dr Pedro Muñoz, o cirurgião, indicava que tudo estava em paz. O pai da Clarice, também médico, acompanhou o procedimento de retirada do lobo pulmonar direito e mais tarde me contou que aconteceu de modo rápido, sem perda de sangue, como se fosse mesmo muito simples.

Mais uma semana de recuperação na UTI, sem nenhuma intercorrência, e finalmente fomos liberados para voltar para casa. Fim dessa história, começo de vida nova para todos nós.

Desnecessário dizer que ao longo desse processo houve muita dor e incertezas. Ocupariam milhões de terabytes  as lágrimas, se narradas aqui. Para mim, hoje, importante mesmo é alertar a algum pai ou mãe em igual situação de que há solução para todo e cada medo.

Estou à disposição para trocar informações e, sendo possível, ajudar.